Descrição
Manifesto direcionado às autoridades da República, publicado pelo movimento Médicos Pela Vida, defendendo a autonomia médica para prescrever o tratamento precoce contra a covid-19, mesmo sem eficácia comprovada. O manifesto também solicita, entre outras ações, que o tratamento precoce seja incluído nas políticas públicas de enfrentamento à covid-19.
Até essa data, registravam-se 71.469 óbitos pela covid-19.
Dados do site https://covid.saude.gov.br
Informações Gerais
Descrição
Manifesto direcionado às autoridades da República, publicado pelo movimento Médicos Pela Vida, defendendo a autonomia médica para prescrever o tratamento precoce contra a covid-19, mesmo sem eficácia comprovada. O manifesto também solicita, entre outras ações, que o tratamento precoce seja incluído nas políticas públicas de enfrentamento à covid-19.
Tipo da evidência
Formato
Agentes institucionais envolvidos
Número de óbitos registrados na época em que este fato aconteceu
71469
Dados da fonte de informação
Data da publicação
11 de julho de 2020
Título original
Manifesto II - EM DEFESA DA VIDA, DO EXERCÍCIO DA MEDICINA E DA CONCILIAÇÃO NACIONAL.
Fonte de coleta (Dados da fonte de informação)
Associação Médicos Pela Vida
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O que diz a ciência
Conteúdo sobre o que diz a Ciência
O Manifesto II do movimento Médicos pela Vida defende a autonomia médica para prescrever o “tratamento precoce”, composto por medicamentos que não têm comprovação científica para tratar a covid-19. Além disso, esse manifesto solicita ao STF estabelecer que todos os municípios sigam obrigatoriamente as diretrizes de condução da pandemia do Ministério da Saúde, porém, é importante ressaltar que o ministério, na época, era comandado por uma política controversa e anticiência. A associação ainda sugere, nesse manifesto, a criação de um comitê de acompanhamento da covid-19, e que este seja responsável por divulgar dados sobre a pandemia, não especificando quem escolheria os membros do comitê.
O manifesto critica “intervenções alheias sobre o exercício médico inalienável, por parte de autoridades, gestores, políticos, instituições, grande mídia”. Isso se dá no contexto em que a prescrição de medicamentos sem eficácia científica comprovada para o tratamento da covid-19 estava sendo fortemente criticada por amplos setores da sociedade, porém, a associação encarou essa postura como um “ataque à liberdade e autonomia médica”. É imprescindível destacar que a autonomia médica é um princípio fundamental, porém, não é absoluto; isto é, não pode ser utilizada como justificativa para a prática de medicina não baseada em evidências. As decisões médicas devem ser guiadas por princípios legais, pela autonomia do paciente e pelas evidências científicas disponíveis. A máxima da ética médica afirma que, em primeiro lugar, as condutas médicas não devem prejudicar o paciente. É preciso que o paciente tenha sua dignidade e autonomia também respeitadas.
O manifesto traz em seu conteúdo a defesa dos medicamentos ivermectina, nitazoxanida, hidroxicloroquina, azitromicina e sulfato de zinco como tratamento precoce da covid-19. No entanto, é fundamental destacar que, no momento da publicação, a comunidade científica não havia encontrado evidências sólidas que sustentassem a eficácia desses medicamentos no combate à doença. Ao contrário, estudos rigorosos e cientificamente embasados indicavam que esses medicamentos não apenas eram ineficazes, como também apresentavam riscos potenciais para a saúde dos pacientes.
Em relação à hidroxicloroquina e cloroquina, já existiam estudos mostrando a falta de eficácia na covid-19 e, inclusive, a possibilidade de riscos associados ao uso de tais medicamentos no contexto da covid-19. A cloroquina e a hidroxicloroquina são medicamentos inicialmente produzidos para tratar a malária, além de também serem prescritos para doenças autoimunes, como artrite reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico. Seus efeitos adversos estão descritos na literatura e na bula dos medicamentos, incluindo o prolongamento do intervalo QT, que aumenta o risco de desenvolvimento de arritmias malignas. Estudos científicos da época destacavam, como principal preocupação, o risco de agravamento das complicações da covid-19 com o uso de medicamentos como a cloroquina e a hidroxicloroquina. Isso porque a própria doença pode desencadear alterações cardiovasculares, e a utilização desses fármacos poderia potencializar tais efeitos adversos. Diante dessa preocupação legítima e da comprovada falta de eficácia desses medicamentos no tratamento da covid-19, seu uso já vinha sendo considerado inadequado por representar um risco adicional à saúde dos pacientes.
Naquela época, já havia sido publicada no Brasil uma diretriz elaborada conjuntamente pela Sociedade Brasileira de Infectologia e pela Sociedade Brasileira de Pneumologia mostrando que esses medicamentos não eram eficazes no tratamento para a covid-19 e, também, uma revisão rápida divulgada pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) das evidências disponíveis até aquele momento sobre o uso de hidroxicloroquina e cloroquina no tratamento da covid-19, que destacava a ausência de comprovação científica robusta quanto à eficácia desses medicamentos contra o SARS-CoV-2 (coronavírus causador da covid-19).
Em relação à ivermectina, não havia nenhum estudo clínico robusto até o momento da publicação do manifesto que mostrasse qualquer benefício na utilização da ivermectina como tratamento da covid-19. Em 2020, o Conselho Regional de Farmácia do estado de São Paulo (CRF-SP) emitiu uma nota técnica se manifestando contra o uso da ivermectina na covid-19, ressaltando que a ação antiviral observada in vitro não poderia ser atingida in vivo sob o risco de intoxicação pelo medicamento. A nota buscou ainda elencar os riscos associados ao uso de ivermectina devido às reações adversas já documentadas inclusive na bula. Alguns meses após esse manifesto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou uma recomendação mostrando que, a partir de dados obtidos em 16 ensaios clínicos, não havia certeza de que o medicamento reduziria a mortalidade e a gravidade da doença, portanto, seriam necessários mais estudos e dados para a adoção do tratamento.
Sobre a inclusão da azitromicina nesse protocolo, estudos publicados ainda em 2020 já contestavam esse tratamento. Um estudo publicado em maio de 2020 no Journal of the American Medical Association (JAMA) mostrou que o uso de azitromicina, sozinho ou em combinação com hidroxicloroquina, não reduziu a mortalidade em pacientes hospitalizados com covid-19. Outro estudo publicado no The New England Journal of Medicine mostrou que o uso de hidroxicloroquina, isoladamente ou em combinação com azitromicina, também não melhorou as condições clínicas dos pacientes hospitalizados com covid-19, mas aumentou o risco de complicações cardíacas e hepáticas.
Quanto ao uso de nitazoxanida, em 2020, os estudos que embasaram seu uso na covid-19 apresentaram resultados mediante métodos experimentais in vitro, que não podem ser extrapolados para o uso em um organismo. Em 2021, a Associação Médica Brasileira divulgou uma diretriz afirmando que não era recomendado o uso do medicamento na covid-19 leve, justamente pela ausência de benefícios. Nos anos subsequentes, estudos mais robustos reafirmaram que não havia benefício no tratamento com nitazoxanida. Uma nota técnica divulgada pelo Ministério da Saúde em março de 2021 afirmava que “as principais evidências de eficácia da nitazoxanida são oriundas de três ensaios clínicos randomizados, porém consideradas de baixa qualidade metodológica e com moderado a alto risco de viés”. Portanto, não havia evidências robustas para defender a inclusão de mais esse medicamento no protocolo de tratamento precoce.
Da mesma forma, a suplementação com zinco também não se mostrou eficaz contra a covid-19. Embora, até o momento do manifesto, outros estudos e o conhecimento acumulado já apontassem para a falta de plausibilidade na utilização de suplementação de zinco no tratamento de uma infecção como a covid-19, um ensaio clínico randomizado publicado mais tardiamente, em fevereiro de 2021 no Journal of the American Medical Association (JAMA) não encontrou benefícios do uso de zinco no tratamento da covid-19.
Além disso, a afirmação de que governantes, ao adotarem medidas de isolamento social, estariam priorizando interesses pessoais em detrimento da saúde da população é infundada e contraditória às evidências científicas. As medidas de isolamento e distanciamento social são estratégias comprovadamente eficazes para conter a disseminação de doenças infecciosas, como a covid-19, conforme as evidências científicas já vinham apontando desde 2020. O isolamento mais restritivo, conhecido como lockdown, é inclusive medida recomendada em situações de aumento na taxa de transmissão, para evitar o colapso do sistema de saúde. Isso porque o isolamento social é capaz de reduzir a transmissão de pessoa a pessoa. Considerando que a covid-19 pode ser transmitida até mesmo por indivíduos assintomáticos e pré-sintomáticos, o isolamento social, aliado a outras medidas não farmacológicas de prevenção, mostrou-se uma ferramenta essencial no controle da pandemia, especialmente nos países que implementaram tais estratégias de forma adequada e consistente. É importante destacar que o isolamento social não é uma estratégia nova e é reconhecido como uma medida de saúde pública eficaz na contenção da transmissão de doenças infecto-contagiosas, incluindo doenças transmitidas por via respiratória, como a covid-19. A alegação de que o isolamento social aumenta a mortalidade por outras doenças é uma simplificação exagerada da realidade, além de carecer de dados concretos que sustentem tal afirmação. É importante ressaltar que os sistemas de saúde em todo o mundo foram sobrecarregados pela covid-19, o que pode ter impactado o atendimento a outras doenças. No entanto, relacionar o aumento da mortalidade por outras causas exclusivamente às medidas de isolamento não encontra respaldo em dados científicos.
Ademais, a afirmação de que as medidas de isolamento causam aumento da fome e da violência também carece de embasamento. Embora seja verdade que essas medidas podem ter efeitos colaterais socioeconômicos, é importante considerar que as consequências de uma pandemia descontrolada seriam ainda mais devastadoras, tanto na saúde pública quanto na economia. Os países que seguiram as recomendações de isolamento social puderam controlar melhor o avanço da doença, o que permitiu a retomada da economia mais precocemente que os países que decidiram ignorar as medidas de prevenção. A boa gestão da crise econômica depende também de uma gestão eficaz da crise sanitária.
Portanto, o manifesto apresenta alegações fundamentadas em evidências frágeis, com o intuito de reforçar uma política anticiência que já vinha sendo amplamente criticada pela comunidade científica e médica que, por sua vez, têm se empenhado incansavelmente na defesa de políticas de saúde baseadas em evidências científicas robustas para o enfrentamento eficaz da pandemia de covid-19.
Fontes
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