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Tratamento Precoce

A pandemia de covid-19 trouxe à tona o uso off-label de medicamentos, prática que consiste em reposicionar fármacos para tratar condições diferentes daquelas indicadas na bula. Durante a crise sanitária, o chamado “tratamento precoce” foi promovido com base em evidências frágeis, incluindo medicamentos como hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e nitazoxanida, além de suplementos vitamínicos. No entanto, esses fármacos, cujas indicações são específicas para outras doenças, não têm comprovação científica de eficácia contra a covid-19. Diversos estudos, incluindo ensaios clínicos randomizados, já demonstravam que tais medicamentos não são eficazes para tratar a doença, reforçando a importância de evidências robustas e da aplicação de metodologias adequadas antes de adotar novas indicações terapêuticas. 

Apesar de o Brasil ter sido um dos países que aderiu ao “tratamento precoce”, as evidências científicas já mostravam, desde 2020, que os medicamentos não eram eficazes no tratamento da covid-19 e que ainda poderiam oferecer riscos à saúde, em virtude de efeitos colaterais graves, incluindo problemas cardíacos. Recentemente, o artigo publicado na revista International Journal of Antimicrobial Agents, com o estudo que embasou a especulação de que a hidroxicloroquina poderia ser usada para tratar a covid-19, foi retratado. Apesar do atraso na retratação, o estudo liderado por Didier Raoult foi removido por apresentar falhas metodológicas graves, observadas por cientistas de todo o mundo desde a época de sua publicação, em 2020. Após uma série de fraudes envolvendo o cientista, Raoult teve mais esse artigo retratado, além de ter perdido o direito de exercer a medicina.

O “tratamento precoce” foi defendido por lideranças políticas, incluindo o governo Bolsonaro, e por algumas entidades médicas e empresas de saúde. Essa insistência, mesmo diante de alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da comunidade científica, contribuiu para desinformar a população e enfraquecer medidas eficazes de combate à pandemia, como o uso de máscaras, o distanciamento social e a vacinação. Além de ser ineficaz, o estímulo ao uso desses medicamentos desviou esforços e recursos que poderiam ter sido direcionados para as estratégias comprovadamente eficazes.

As evidências coletadas pelo acervo mostram que a propagação de desinformação sobre a doença e a adoção do “tratamento precoce” pelo Ministério da Saúde da época teve como intenção criar, no país, uma falsa sensação de segurança, levando muitas pessoas a ignorar as orientações de saúde pública. O caso do “tratamento precoce” é um alerta sobre os perigos de políticas públicas embasadas em evidências frágeis e interesses alheios à saúde da população. É um exemplo claro de como a ciência deve guiar as decisões em momentos de crise — e do preço que pagamos quando isso não acontece.